quinta-feira, julho 16, 2009

Eu Sei, Mas Não Devia



Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir
de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E porque à medida que se acostuma, esquece o sol,
esquece o ar, esquece a amplidão.


A gente se acostuma a acordar de manhã,
sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíches porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos
e que haja números para os mortos.
E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra,
dos números da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro
e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.


A gente se acostuma a pagar por tudo
o que deseja e o que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes,
a abrir as revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir a comerciais.
A ir ao cinema, a engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado na infindável catarata dos produtos.


A gente se acostuma à poluição.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar.
À luta. À lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir passarinhos,
a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali,
uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila~
e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada,
a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro,
a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito
porque tem sono atrasado.


A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar,
se perde de si mesma.

Autora: Marina Colasanti

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